TIR – Terapia Integrada de Reprocessamento: como o corpo e as partes internas abrem caminho para a cura

A TIR – Terapia Integrada de Reprocessamento é uma abordagem psicoterapêutica contemporânea, criada para tratar experiências emocionais marcantes que ainda reverberam na vida do paciente. Ela parte de um princípio simples, mas profundo: nem todo sofrimento se resolve com conversa, nem toda dor precisa ser revivida em palavras.

Ao invés de começar pela narrativa verbal, a TIR acessa registros emocionais mais antigos por meio do corpo e das partes internas. Isso permite trabalhar vivências que o paciente nem sempre consegue explicar, mas sente intensamente — às vezes em forma de sintomas, reações automáticas ou sensações vagas de desconforto.

O modelo é estruturado em cinco fases progressivas. Neste artigo, vamos aprofundar as duas primeiras: a Fase 0 – Evocação Somática Cronológica e a Fase 1 – Neuroprocessamento Somático com Integração de Partes Internas.

Por que a TIR começa pelo corpo?

A resposta está tanto na prática clínica quanto na neurociência.

Quando passamos por uma situação emocional intensa, especialmente na infância ou em contextos de vulnerabilidade, o cérebro nem sempre consegue organizar aquela vivência coerentemente, com começo, meio e fim. Isso ocorre porque, sob ameaça, o sistema nervoso prioriza a sobrevivência, não a elaboração racional.

Em vez de ser registrada no córtex pré-frontal — área responsável pelo pensamento lógico e pela linguagem — a experiência é gravada em estruturas subcorticais, como a amígdala, o hipocampo e o tronco encefálico. Esses circuitos formam o chamado “cérebro emocional” sendo especializados em memória implícita, sensações e padrões de reação automática.

É por isso que o trauma costuma ser sentido, mais do que lembrado.

Em muitos casos, o paciente não consegue descrever com clareza o que o afeta, mas carrega no corpo sinais de que algo importante continua vivo ali: tensão muscular, sensação de alerta constante, bloqueios inexplicáveis, calafrios, falta de ar ou dores recorrentes. A fala não acessa o que o corpo não esqueceu.

A TIR reconhece isso e propõe um ponto de partida diferente: o foco somático como porta de entrada para conteúdos emocionais profundos. Ao trabalhar com esses registros corporais, o terapeuta não força o acesso à memória, mas oferece espaço para que ela venha por si — muitas vezes em forma de imagem, emoção, impulso ou presença interna.

Esse olhar está em total sintonia com pesquisas de autores como Bessel van der Kolk, Stephen Porges, Eugene Gendlin, Francine Shapiro, David Grand e Peter Levine, que demonstram que o trauma não é o que aconteceu, mas o que permanece no corpo quando não conseguimos processar o que vivemos.

Fase 0 – Evocação Somática Cronológica

A Fase 0 é a primeira etapa prática da TIR. É nela que o terapeuta convida o paciente a acessar sua história emocional por meio de cenas que emergem espontaneamente — não a partir de perguntas, mas de uma escuta corporal profunda, feita com os olhos fechados e música bilateral.

A evocação acontece em três momentos distintos: infância, adolescência e vida adulta.

Como funciona essa fase?

  1. Evocação espontânea por períodos da vida
    O paciente é guiado, com os olhos fechados, a deixar surgir imagens ou lembranças marcantes de cada fase da vida.
  2. Nomeação e etiquetagem emocional
    Para cada cena, o terapeuta ajuda a identificar idade aproximada, emoção predominante, sensação corporal e crença negativa.
  3. Avaliação da carga emocional (SUDS)
    Cada conjunto de cenas é avaliado numa escala de 0 a 10, observando a intensidade da perturbação emocional.
  4. Reprocessamento leve (5 ciclos)
    Para cada período (infância, adolescência e vida adulta), realiza-se um breve ciclo de reprocessamento com foco somático.
  5. Repescagem cronológica
    O terapeuta convida o paciente a acessar lacunas da linha do tempo que não surgiram espontaneamente, utilizando o mesmo método somático.

O que se constrói nessa fase?

  • Um panorama emocional cronológico, mapeado pelas sensações.
  • Uma lista de alvos terapêuticos com SUDS elevado.
  • Uma Tabela de Danos Psíquicos.
  • Um vínculo inicial de segurança interna com o processo.

Fase 1 – Neuroprocessamento Somático com Integração de Partes Internas

A Fase 1 inicia o reprocessamento mais estruturado. É nela que o paciente reencontra partes internas associadas a eventos que ainda carregam dor, medo ou confusão. Essas partes se expressam por meio do corpo, revelando onde o trauma ficou registrado.

Etapas principais da Fase 1:

1. Preparação do terapeuta
Antes de iniciar, o terapeuta se regula, respira, silencia e sintoniza com o campo psíquico. A presença deve convidar à segurança.

2. Ancoragem de segurança
O paciente acessa uma imagem, símbolo ou sensação que represente segurança e proteção.

3. Seleção do alvo terapêutico
O ponto de partida geralmente vem das memórias da Fase 0: uma lembrança marcante, uma emoção desconfortável ou uma crença limitante. O terapeuta ajuda a escolher o que acessar primeiro.

4. Acesso ao núcleo experiencial
O paciente evoca a cena, identifica a emoção predominante, a sensação corporal e a crença negativa associada.

5. Avaliação inicial (SUDS)
A intensidade emocional é mensurada, para estabelecer um ponto de comparação para o fim do processo.

6. Foco no portal somático
O paciente localiza no corpo a região onde sente mais intensamente aquela carga emocional, sendo convidado a aprofundar a atenção nesse ponto.

7. Acesso à parte interna
O terapeuta convida o paciente a permitir que a parte ligada àquela sensação se manifeste. Nessa etapa, diferencia-se se a parte é um protetor (que tenta conter ou evitar a dor) ou um exilado (parte que carrega diretamente a dor emocional). Essa distinção guiará a forma de condução.

8. Diálogo com a parte
O terapeuta conduz a escuta com base no tipo de parte que se apresenta:

Se for um protetor, escuta-se o que essa parte está tentando proteger, seus receios e o que ela precisa para permitir acesso ao conteúdo mais vulnerável.

Se for um exilado, acolhe-se com delicadeza suas dores, frustrações, necessidades não atendidas e o que ela gostaria de ter vivido.

9. Expressão do impulso bloqueado
A parte é convidada a completar um gesto simbólico que represente algo que tentou fazer, mas foi interrompido no passado — como correr, gritar, solicitar ajuda ou se proteger.

10. Liberação simbólica do fardo
A parte é encorajada a liberar aquilo que carrega — emoções, imagens, tensões ou crenças. Essa liberação ocorre de modo espontâneo e simbólico, guiada pelas sensações corporais.

11. Fluxo associativo (rodadas de continuidade)
O terapeuta segue o que surgir de forma espontânea a partir do corpo, conduzindo rodadas de escuta interna até que o material se esgote ou se reorganize.

12. Escaneamento corporal
O paciente observa se ainda existe alguma região do corpo com carga emocional ou desconforto.

13. Exploração de resíduos pendentes
O terapeuta investiga se alguma parte interna não se sentiu ouvida ou se ainda há algo por integrar.

14. Avaliação final (SUDS)
O nível de perturbação emocional é novamente avaliado, para comparar com o início da sessão.

15. Instalação de crença desejada
O paciente é convidado a escolher uma nova crença mais funcional e verificar se ela faz sentido para a parte trabalhada.

16. Integração somática e escaneamento final
O corpo é escaneado mais uma vez para garantir estabilidade, neutralidade ou leveza. Verifica-se se a parte continua presente ou já se integrou.

17. Ancoragem de recursos e partes aliadas
O terapeuta reforça as partes que apoiaram o processo, transformando-as em recursos acessíveis para o futuro.

18. Fechamento simbólico
A sessão se encerra com um gesto, uma imagem, uma frase ou qualquer símbolo que represente a integração alcançada.

O que muda após as Fases 0 e 1?

  • O paciente ganha clareza emocional e sensação de leveza.
  • Memórias traumáticas perdem força e deixam de dominar reações.
  • Partes internas são integradas de forma consciente e segura.
  • O corpo é percebido como um aliado, não mais como um campo de ameaça.
  • O vínculo terapêutico se aprofunda e a confiança no processo aumenta.

Conclusão: o começo que muda tudo

As Fases 0 e 1 da TIR não são preparações secundárias, mas momentos centrais do tratamento. São nelas que o paciente entra em contato com sua história profunda, acessa o que ficou silenciado e encontra, no corpo, o caminho para a reintegração.

Para o terapeuta que busca um modelo respeitoso, baseado em evidências e capaz de produzir mudanças reais sem sobrecarregar o paciente, a TIR oferece uma base sólida, segura e transformadora.

Sou Daltro Feil, psicanalista com 25 anos de experiência e um entusiasta das terapias de reprocessamento. Neste blog, o Quinto Caminho, compartilho reflexões e descobertas que venho reunindo ao longo da minha caminhada, especialmente sobre o sofrimento humano — suas origens, seus sentidos e as possibilidades de transformação que ele pode esconder.