Como a Reconsolidação da Memória Pode Transformar Emoções e Traumas: Entenda as Bases Científicas e Terapêuticas

Introdução

Você já se perguntou por que lembranças antigas parecem mudar com o tempo? Ou por que uma memória dolorosa pode perder sua força emocional depois de uma boa sessão de terapia? A resposta pode estar em duas teorias fascinantes que vêm ganhando espaço no campo das neurociências e da psicoterapia: a Teoria da Interferência e a Teoria da Reconsolidação da Memória Terapêutica.

Neste artigo, quero te explicar como as memórias não são registros fixos do passado, mas construções dinâmicas que podem, sim, ser modificadas. E mais: vamos explorar como essas mudanças podem ser provocadas intencionalmente em contextos terapêuticos, contribuindo para a superação de traumas e padrões emocionais repetitivos.

A memória não é um arquivo: ela é um processo

Durante muito tempo, acreditou-se que, uma vez consolidadas, as memórias permaneciam intactas. Essa ideia vinha da antiga Teoria da Consolidação, que surgiu no início do século XX. Mas tudo começou a mudar quando, em 1930, o psicólogo Frederic Bartlett propôs algo inovador: lembrar não é apenas “acessar” uma memória, mas reconstruí-la. Ou seja, cada vez que evocamos uma lembrança, damos a ela uma nova forma.

Décadas depois, a neurociência confirmou essa hipótese: ao relembrar algo, o cérebro desestabiliza os chamados engramas (rastros físicos das memórias), abrindo uma janela de modificação. Esse processo é conhecido como reconsolidação.

Durante esse período de instabilidade, o cérebro pode adicionar novas informações ao conteúdo original. O resultado? Memórias modificadas – e, em muitos casos, distorcidas. Isso explica por que nossas lembranças nem sempre são fiéis à realidade e por que elas podem ser “manipuladas” de forma terapêutica.

Tipos de memória: muito além do que você consegue lembrar

Para entender melhor como a reconsolidação atua, é importante diferenciar os tipos de memória:

  • Explícitas (declarativas): aquelas que conseguimos verbalizar, como fatos, datas e eventos.
  • Implícitas (não declarativas): ligadas a hábitos, habilidades motoras, condicionamentos e até à memória operacional do dia a dia.

Além disso, temos outras classificações relevantes para a prática clínica:

  • Memória de medo: geralmente associada à amígdala cerebral.
  • Memória de trabalho: responsável por manter e manipular informações de curto prazo.
  • Memória espacial: ligada à navegação e localização, processada principalmente pelo hipocampo.
  • Memória social: permite o reconhecimento de outros seres humanos e a formação de vínculos.
  • Memória episódica: aquela que nos permite reviver um episódio com detalhes como “onde”, “quando” e “com quem”.

Essas memórias não estão separadas em caixinhas; elas se sobrepõem e interagem entre si o tempo todo, em áreas específicas do cérebro. E é justamente por isso que podemos intervir nelas por múltiplas vias – cognitivas, emocionais, comportamentais e até somáticas.

A Teoria da Interferência: o novo compete com o antigo

Teoria da Interferência propõe que um novo aprendizado pode interferir, competir e até substituir um engrama anterior. Isso acontece quando o novo conteúdo faz mais sentido ou é reforçado de maneira mais intensa. Em outras palavras: o que é aprendido depois pode ser mais forte do que o que foi aprendido antes.

Na prática terapêutica, isso significa que podemos introduzir novos significados, novas interpretações e até novas emoções em cima de uma experiência passada, especialmente se ela for repetidamente acessada e ressignificada. É como gravar uma nova trilha sonora em um filme antigo.

A Teoria da Reconsolidação da Memória Terapêutica: mudar de dentro pra fora

A reconsolidação terapêutica é uma proposta ainda recente, mas com enorme potencial. Segundo essa teoria, ao acessar uma memória emocionalmente relevante durante uma sessão, o terapeuta pode ajudar o paciente a inserir um novo componente emocional nesse momento de instabilidade da memória.

Por exemplo, ao revisitar uma cena traumática com segurança, acolhimento e recursos emocionais disponíveis, o paciente pode criar um novo condicionamento emocional. A lembrança não desaparece, mas perde sua força dolorosa, sendo associada a sentimentos mais suaves e adaptativos.

Essa é uma forma de trabalhar diretamente na raiz do sofrimento, e não apenas nos sintomas. É como se o cérebro, ao reabrir um “arquivo”, permitisse que ele fosse reescrito com novas cores, sons e significados. Mesmo que ainda faltem mais estudos para comprovar todos os mecanismos envolvidos, os resultados clínicos vêm sendo cada vez mais promissores.

Por que isso importa na psicoterapia?

Porque grande parte do sofrimento emocional que encontramos no consultório está ancorado em memórias antigas que ainda disparam reações automáticas. Quando conseguimos acessar essas memórias em segurança e inserir nelas novos sentidos ou emoções, damos ao paciente a chance de criar caminhos mais saudáveis – não apenas cognitivamente, mas neurobiologicamente.

Compreender a plasticidade da memória é compreender a possibilidade real de mudança. Afinal, se o cérebro reescreve suas histórias, ele também pode reescrever sua forma de sentir, reagir e se relacionar com o mundo.

Conclusão

A reconsolidação da memória e a interferência entre engramas não são apenas curiosidades científicas. Elas representam um novo horizonte para a psicoterapia, abrindo portas para intervenções mais eficazes, profundas e duradouras.

Memórias não são destino. Elas são matéria-prima. E o que fazemos com essa matéria – no consultório, na vida e nas relações – pode transformar o enredo de alguém.

Sou Daltro Feil, psicanalista com 25 anos de experiência e um entusiasta das terapias de reprocessamento. Neste blog, o Quinto Caminho, compartilho reflexões e descobertas que venho reunindo ao longo da minha caminhada, especialmente sobre o sofrimento humano — suas origens, seus sentidos e as possibilidades de transformação que ele pode esconder.