Introdução
Na prática com o Brainspotting, uma das situações mais comuns — e também mais desafiadoras — é quando o paciente fixa o olhar na ponteira, permanece em silêncio… e diz que não sente nada. Nenhuma emoção clara. Nenhuma sensação corporal evidente. Um suposto “vazio”. Ou uma neutralidade desconcertante.
Essas percepções que compartilho aqui vêm da minha vivência direta com essa técnica. Não como um manual técnico, mas como observações clínicas que amadurecem no manejo, sessão após sessão. O Brainspotting é um campo sensível. Ele convida o paciente à escuta profunda de si. Mas nem sempre o sistema está pronto para essa escuta. E quando o corpo não responde de imediato, o desafio terapêutico começa.
“Não sinto nada” não significa que nada está acontecendo
É um erro comum — tanto por parte do paciente quanto de terapeutas iniciantes — interpretar a ausência de sensações corporais como ausência de processo.
Na verdade, o “não sentir nada” pode ser um sintoma direto da desregulação causada pelo trauma. Muitas vezes, o que o paciente viveu foi tão intenso ou prolongado, que o sistema aprendeu a anestesiar qualquer sinal interno como forma de proteção.
Nesse contexto, o silêncio, o vazio e a desconexão são conteúdos clínicos. São indicadores que há algo encapsulado, protegido, guardado.
Possíveis significados do “não sentir nada”
Durante o uso do Brainspotting, essa resposta pode ter múltiplas raízes. Entre as mais comuns, estão:
1. Congelamento do sistema nervoso
Quando a resposta de luta ou fuga não foi possível no passado, o corpo entrou em modo de congelamento — uma defesa biológica que desativa temporariamente a percepção.
2. Dissociação leve
O paciente está presente na sala, mas desconectado da própria experiência interna. Pode parecer calmo, mas está anestesiado por dentro.
3. Alto controle racional
Pessoas muito mentais ou treinadas a suprimir emoções podem ter dificuldade em acessar o corpo sem interpretar, ou justificar. O sistema nervoso permanece na cabeça e evita o mergulho sensorial.
4. Desaprendizado emocional
Crescer em ambientes onde sentir era punido ou ignorado faz com que o corpo se descondicione a reconhecer seus próprios sinais.
Como conduzir o processo quando não há sensação aparente?
O papel do terapeuta aqui é acolher o silêncio, ampliar a curiosidade e manter a relação viva. O ponto visual, por si só, não obriga ninguém a sentir. Mas pode ser o início de uma reconexão, se o setting for seguro.
Algumas estratégias clínicas que costumo utilizar. Por favor, não se trata de uma regra. Parte apenas da minha experiência:
✔️ Nomear o “nada”
“Vamos só observar esse não sentir. Tem forma? Tem cor? Está em algum lugar específico do corpo?”
Isso ajuda a transformar o vazio em objeto de atenção, ao invés de tratá-lo como ausência.
✔️ Validar a experiência
“Está tudo certo em não sentir nada agora. Isso também é parte do processo.”
Isso evita que o paciente se sinta inadequado ou frustrado com o próprio ritmo.
✔️ Usar âncoras externas
“Perceba o contato dos pés com o chão. Sinta o apoio das costas na cadeira.”
A propriocepção e a exterocepção são pontes valiosas para reabrir o canal da interocepção.
✔️ Oferecer co-regulação
“Se quiser, podemos respirar juntos por alguns segundos. Não precisa fazer nada além disso.”
A presença do terapeuta como base segura pode ajudar o sistema a sair do colapso fisiológico.
O objetivo não é sentir muito — é sentir com segurança
Esse é um ponto fundamental no uso do Brainspotting: não estamos em busca de uma catarse. Estamos cultivando a capacidade de permanecer em contato com o que emerge, mesmo que o que apareça seja o “nada”.
Com o tempo — e apenas com o tempo — esse “nada” pode se transformar. Pode ganhar temperatura, textura, memória. Pode revelar tensões antes imperceptíveis. Pode abrir caminho para emoções que estavam congeladas.
Mas isso só acontece quando o terapeuta respeita o tempo do corpo, sem forçar nem abandonar.
Reflexão final
Ao longo da minha prática, aprendi que os momentos mais silenciosos, mais aparentemente “vazios”, muitas vezes são os mais férteis. É ali, naquele espaço sem palavra, sem forma clara, que o sistema começa a confiar. Começa a se permitir.
Portanto, quando o paciente diz que não sente nada no corpo, a sessão não parou — ela apenas mudou de linguagem.
O que está em jogo não é a sensação que falta, mas o vínculo que se constrói com o próprio corpo. E é isso que, com o tempo, transforma o Brainspotting numa experiência profundamente reestruturadora.
