Imagine que você está em queda livre, literalmente. Essa foi a experiência de Kevin Hines, que pulou da ponte Golden Gate numa tentativa de suicídio e, no instante em que deixou o parapeito, percebeu: “Eu não queria morrer. Eu queria que a dor parasse.”
Ele sobreviveu. E sua história se espalhou pelo mundo, com mais de 20 milhões de visualizações em vídeos, entrevistas e documentários.
Mas o que isso tem a ver com terapia e com o funcionamento do nosso cérebro?
Tudo. Porque no exato momento em que Kevin se arrependeu, algo muito profundo aconteceu: seu cérebro, mesmo em colapso, começou a tentar salvá-lo.
E é disso que quero falar hoje: como o cérebro humano possui um sistema interno de escaneamento e reorganização que pode nos conduzir à cura — mesmo quando não entendemos racionalmente o que está acontecendo.
O cérebro não precisa de nossa permissão para começar a se reorganizar
Na prática clínica, muitos pacientes me perguntam: “Mas por que eu estou sentindo isso? Por que pensei nessa lembrança agora? Será que estou fazendo certo?”
O que essas perguntas revelam é a tentativa do nosso cérebro consciente — o racional, analítico, controlado — de entender algo que está sendo conduzido em um nível muito mais profundo. E a verdade é: você não precisa entender para que o processo funcione.
O cérebro é como um organismo vivo com capacidade de autoajuste. Ele está sempre escaneando o ambiente, o corpo e a si mesmo em busca de equilíbrios e desequilíbrios.
Esse processo é tão natural quanto respirar. Você não pensa para respirar. O cérebro também não espera seu raciocínio para começar a processar conteúdos emocionais. Ele faz isso sozinho, se tiver espaço e condições mínimas.
Neuroplasticidade: o poder de mudar por dentro
Durante muito tempo, acreditava-se que o cérebro adulto era fixo. Que, depois de certa idade, nada mais mudava.
Hoje sabemos o contrário. A neuroplasticidade é a capacidade que o cérebro tem de se reorganizar ao longo da vida, criando novas conexões e até gerando novas células (neurogênese).
É por isso que terapias baseadas em vivência emocional, atenção plena e consciência corporal funcionam tão bem: elas não ficam apenas no discurso, mas envolvem o corpo, os sentidos e o sistema nervoso todo.
Elas dão ao cérebro a chance de fazer aquilo que ele já está programado para fazer: localizar onde está o nó e, aos poucos, desatá-lo.
Você sente antes de entender
Imagine alguém que revive, durante uma sessão terapêutica, uma lembrança dolorosa da infância. De repente, sente um aperto no peito, ou uma sensação quente na garganta, ou um impulso de chorar sem saber o motivo.
A mente tenta encontrar explicações: “Será que foi aquilo que meu pai disse?” Mas, na verdade, o cérebro já está trabalhando. Está fazendo conexões. Está organizando memórias fragmentadas. Acessando camadas que talvez nunca tenham sido tocadas com segurança.
E tudo isso acontece sem que o paciente precise entender. Aliás, muitas vezes, tentar entender com pressa pode atrapalhar. É como tentar abrir um botão de camisa puxando com força — você só aperta mais o nó. Mas se apenas observar, sentir e deixar o processo acontecer, o botão solta sozinho.
Processamento não é linear
Outro ponto essencial: o processamento profundo do cérebro não segue uma linha reta. Às vezes, a mente volta ao passado. Outras vezes, salta para o futuro. Às vezes, sente raiva, depois chora, depois ri, depois sente tédio, depois sente alívio. Tudo isso pode acontecer numa única sessão.
E isso não significa que algo está errado. Muito pelo contrário — significa que o cérebro está circulando pelas camadas necessárias para reorganizar aquilo que estava preso.
O cérebro profundo precisa de espaço, não de explicações
O mais bonito nesse processo é ver quando o próprio paciente percebe a mudança.
Não porque alguém disse o que ele devia sentir, mas porque ele sente que algo mudou por dentro.
A lembrança já não dói do mesmo jeito. A imagem mental perdeu força. O corpo relaxa. O nível de ativação emocional (SUDS) cai de 9 para 3, por exemplo.
E aí vem o que David Grand chama de “momento aha!”. A razão começa a entender aquilo que o corpo já sabia. Mas veja: o corpo começou o processo antes. O entendimento veio depois.
Assim como Kevin Hines, que sobreviveu ao pior momento da sua vida porque seu cérebro, num lampejo de instinto, lutou por ele — nós também temos dentro de nós esse sistema de reorganização.
E quando damos espaço para que ele funcione, o que parecia impossível começa a se resolver por dentro, devagar, em silêncio, e com profundidade.
Por isso, da próxima vez que você se pegar querendo entender tudo o que sente, experimente mudar a pergunta. Em vez de “por que isso está acontecendo?”, diga: “Talvez meu cérebro saiba. Talvez ele esteja me ajudando agora.”
